Blog do JM

30 junho, 2006

DIÁRIO DA ÍNDIA - Parte IV: Bangalore, Puttaparthi (Sai Baba) e Goa

17/01/06 – Aniversário de peregrino

Passei o meu aniversario entre Calcutá, no leste, e Bangalore, no sul da Índia. Desde 1982, quando comemorei a data perambulando na noite de Amsterdam, não vivia experiência do gênero. Há dois anos,passei o 17 de janeiro em Lisboa, mas estava acompanhado de minha esposa, Fátima.

Ainda sobre Calcutá devo dizer que é uma cidade gigantesca, como São Paulo, que exibe em seu miolo sinais de pujanca, mas apresenta muitos contrastes, principalmente em sua periferia. Foram necessários apenas 5 minutos após eu sair do hotel, na primeira noite na cidade, para que me oferecessem maconha e haxixe. Não há tanto assédio de vendedores, como em Delhi, mas os pedintes às vezes clamam com enorme dramaticidade. Alguns parecem realmente famintos.Acordei cedo. O canadense Gilles veio
tomar café comigo.

A caminho do aeroporto, o táxi - um Ambassador - teve o pneu dianteiro estourado a cinco minutos do destino. Como ia devagar, nada grave aconteceu. O motorista me colocou em outro carro. O avião atrasou três horas. Ainda assim, e apesar de ter chegado a Bangalore às 17h, ganhei tempo. De trem seriam três dias! Foi uma viagem solitária, sem papo com qualquer pessoa. E com um contratempo na chegada. Em Bangalore peguei um táxi pré-pago no aeroporto rumo a um hotel de bom nível (o Berry's), listado pelo guia Lonely Planet, situada na área central da cidade. Ao chegar lá, no entanto, encontrei o edifício em reforma. O hotel havia fechado. Com a mochila nas costas, caminhei por uma área de uns três quilômetros, cotando outros hotéis, e acabei no Ajanta, que também é indicado pelo guia. Os hoteis dessa área estão quase sempre lotados, muita gente vem aqui a negócio.

Bangalore, com os seus quase 8 milhões de habitantes, nem parece Índia. Cidade muito ocidentalizada. Cresceu como centro de pesquisas militares. Hoje é um centro de tecnologia, tem várias indístrias de ponta em informática e biotecnologia, comércio intenso e, por enquanto, está encantada com as pizzarias e as cafeterias no estilo ocidental. As grandes marcas estão presentes aqui. Há bons shopping centers. Mas nada que se compare ao glamour dos shoppings brasileiros. Nem mesmo aos de Natal.

Após tomar banho e jantar, exausto, dormi mais cedo.


18/01/06 – Na capital da tecnologia indiana

Hoje tirei o dia para caminhar pelo centro, conhecer o lado ocidental de uma cidade indiana onde há poucos oratórios nas lojas, poucos templos na área central e muitos carros e motos, além de riquixás. Tranquilidade. Não há assédio de vendedores. Há sinais de trânsito em muitos cruzamentos. As ruas são limpas, as lojas, os restaurantes, a estação de trem também - limpa e organizada. Ainda assim há barulho demais e no início da noite o trânsito fica infernal. Há muita fumaça e poeira.Aqui perambulo solitário. Pouca conversa com vendedores, garcons. Olhos atentos para observar a democracia religiosa, a boa convivência entre hindus, cristãos e muçulmanos.

Em alguns centros comerciais, em vez de um pequeno santurário para uma deidade hindu,
encontro azulejos (ao estilo português) que mostram lado a lado figuras de Jesus, Shiva e a Caaba de Meca. Estive hoje no Museu de Tecnologia. Pensei que era algo imponente, mas é tudo muito simples. Na frente do prédio, um orgulho nacional: uma réplica do foguete indiano. Vale lembrar: este país tem misseis, bomba atômica e lança satélites. A Índia, como o Brasil, tem suas enormes contradições políticas, econômicas e sociais. Estive também no estádio de criquet, esporte nacional, e na praça Mahatma Gandhi.Hoje foi um dia quente aqui.

Esqueci de providenciar minha passagem de ônibus para Puttaparthi, amanhã. Lá pretendo pousar no asharam de Sai Baba, a menos que eu não encontre lugar. Mas tenho impressão de que poderei encontrar passagem amanhã e, se possivel, ainda fazer um tour por Bangalore, a 3 dólares, organizado pela Embratur daqui – o Departamento de Turismo, cujo site na web é o Incredible Índia.Ficarei em Puttaparthi até a manhã do domingo, quando retornarei e pegarei um trem para Goa, no litoral oeste, numa estação a seis quilômetros da estacao de Bangalore. Infelizmente não havia mais lugar na primeira classe. Consegui uma cama na segunda classe. Certamente vai ser um “Deus nos acuda”, mas é isso mesmo. Isso dá sabor a esta viagem incrível.
São 21 horas aqui. A Lan House vai fechar e eu vou correr para ver se ainda consigo jantar. Bangalore também dorme cedo.


19/01/06 – À procura de Sai Baba

Estou fortemente resfriado. A maratona indiana está mexendo com a minha resistência. É dificílimo ter resfriado no Brasil. Mesmo em Bangalore, capital do estado de Karnataka, uma cidade com ruas pavimentadas, mais limpeza e mais estilo de vida ocidental, a poeira é constante. E quando à poeira se junta a poluição dos veiculos e a névoa seca que cobre quase toda a Índia nesta época do ano, o resultado é um coquetel um coquetel terrível para os humanos. Em todo lugar, gente tossindo. Nos trens, então... E aqui as pessoas tossem com vontade e sequer viram o rosto quando estão perto de alguém.

Não encontrei um único estrangeiro em Bangalore. Aqui vêm poucos turistas. Em Calcutá notei que eram muitas as garotas mochileiras, boa parte meninas inglesas, de pouco mais de 20 anos. Talvez uma parte dos jovens siga para lá atraida pelas drogas (maconha e haxixe,oferecidas nas esquinas da área da Sudder Street).

Acordei sentindo-me fraco e resolvi dormir mais um pouco. Só sai ao meio dia para o café da manha, as últimas fotos e o deslocamento para estação ferroviária. Lá encarei uma fila para comprar passagem de trem até Dharmavaran, onde então poderia pegar um ônibus para Puttaparthi. Quando chegou a minha vez, a funcionária da estação convenceu-me a mudar de
idéia. Disse-me que era melhor eu pegar um ônibus na bus stand ao lado, rumo a Watterfields e lá tomar um trem direto para Puttaparthi. Hesitei, mas aceitei. Acabou sendo bem melhor para mim. O ônibus, por apenas 15 rúpias, deixou-me na porta de um outro ashram de Sai Baba (o ashram Brindavam, foto à esquerda, bem menor que o de Puttaparthi) em Waterfields.

Lá encontrei uma portuguesa e uma suiça que estavam de partida para Puttparthi e me disseram que, em vez de trem (que levaria uma noite inteira para chegar até o destino), o melhor era eu ir de táxi. Indicou-me então um casal de canadenses que estava esperando um carro já contratado. Falei com o sr. de barba branca (esqueci o nome) e ele aceitou que eu participasse da “vaquinha”, mas a verdade é que táxi que contratara não apareceu (o motorista recebeu adiantado uma parte do dinheiro e decidiu só fazer metade do servico). Acabamos seguindo num LandRover, com mais seis pessoas, cada uma pagando 350 rúpias, algo em torno de 20 reais.


No caminho (uma estrada asfaltada tão estreita onde mal cabia o jipe), muita conversa com o candanense. Deu-me muitas dicas sobre o ashram do Sai Baba (ele está hospedado lá há duas semanas), Falamos muito (nos limites de minhas possibilidades em inglês) sobre Canadá, Índia, Brasil e os problemas sociais e espirituais do mundo moderno. No caminho, um jovem engenheiro indiano, Prakash, que viajava conosco, passou mal depois de comer um pastel vendido na estrada e vomitou bastante. Chegamos ao ashram às 9 da noite e somente o casal de canadenses pôde entrar, pois já estava alojado lá.

Eu e o Prakash saimos à procura de hotel. Fiquei no Hotel Sri Sai Sadan, recomendado pelo canadense. Muito bonzinho, mas o Prashak achou caro (300 rúpias) e foi para um lugar mais barato. O pessoal simpatico do hotel me permitiu jantar mesmo depois de o restaurante ter encerrado suas atividades. Dormi cansado, mas bem nutrido.

20/01/06 – O sagrado e o hilário no templo de Sai Baba

Na manha de hoje, o Prashak, um rapaz super-tranquilo, veio tomar café comigo no hotel, a meu convite.Conversamos sobre sua cidade Chenai, que exclui de meu roteiro por falta de tempo, e também sobre Bangalore, informática, etc. Prashak é devoto do Sai Baba, levou-me até o ashram, apresentou-me a recepcionistas e fui encaminhado ao Setor de Acomodação de devotos não originarios da India e do Nepal. Preenchi ficha, mostrei passaporte, fui fotografado e paguei a taxa de apenas 20 rúpias (1 real) ao dia para ficar hospedado no ashram. Colocaram-me em um dos últimos alojamentos no lado oeste do ashram.


Em toda parte, a foto de Sai Baba. Na pequena sala de recepção havia nada menos de 12 fotos grandes e médias. Sai Baba é para os seus devotos o que Jesus é para os cristaos. Dai o culto onipresente. O asharam Prashanti Nylaiam, este é o nome, é um lugar especial e exemplar (na foto a área do restaurante ocidental e o canadense barbudo com quem viajei de Waterfields a Puttaparthi).
Uma área enorme, de muitos hectares, bem funcional, arborizada, cheia de jardins e onde há dezenas de edificios de cinco andares (no máximo) onde funcionam alojamentos para familias (apartamentos) e para pessoas que viajam sozinhas, vários restaurantes (inclusive um para ocidentais, com excelente comida vegetariana). Na verdade, ali comi a melhor comida vegetariana de minha vida. Os alimentos são preparados sob mantras e orações, tudo feito com o coração e limpo, muitissimo limpo. Comi também no restaurante indiano na noite do primeiro dia, pois perdera a hora no Western Canteen. Bastante diferente: os indianos não usam talheres, todos comem com a mão e adoram umas comidas estranhas, espécie de farofas molhadas, angus que eles misturam com arroz, muito arroz branco e caldo picante.

Os alojamentos dos homens estrangeiros são simples, mas harmoniosos. Centenas de camas de metal com dois colchonetes finos superpostos. Estantes de tijolo junto às paredes laterais. Um santuário simples onde está a foto de Sai Baba e pequenos ícones de deidades hindus. Banheiro com privada estilo ocidental. Nada mais. Como não levei roupa de cama, dormi sobre o colchao limpo. Os mosquitos não me atacaram. Após as 10 da noite, silêncio total e escuridão. Antes, conversas a baixa voz. Tudo muito tranquilo. Comparado aos alojamentos dos indianos e nepaleses (homens e mulheres), o nosso era muito luxuoso: nos deles só havia chão e paredes. Não é discriminação. Os indianos tem o hábito de dormir no chão. As mulheres improvisam pequenas cabanas para trocar de roupa ou assegurar privacidade. Na verdade, em viagem todo indiano está sempre com o seu lencol, um cobertor e um travesseiro. Ao chegar nas estações de trens, ele logo demarca no chão o espaco onde vai ficar sentado e, depois, deitar.

No ashram fiquei ao lado de um rapaz da Croácia, muito prestativo e conversador (até um um pouco demais). Apesar de ele estar muitíssimo gripado, insistia em conversar comigo e dar-me dicas. Não deu para participar do Darshan (encontro com um iluminado) da manhã, em que o Sai Baba aparece e abençoa a multidão reunida no belissimo templo do ashram, um salão que pode abrigar mais de 10 mil pessoas (homens e mulheres separados), todos sentados no chão, com excessão de algumas cadeiras simples para quem esta doente. Cheguei tarde.


O templo é uma das obras arquitetônicas mais lindas que vi na Índia, mas infelizmente nenhum
templo ou santuário dentro do ashram pode ser fotografado (e em toda a India nenhum templo hindu pode ser fotografado por dentro). No centro existe um altar de Ganesha (a deidade com tromba de elefante, filho de Shiva e Pavarti, invocada no inicio de todos os trabalhos espirituais na Índia). Ganesha e Hanuman são muito venerados aqui. Há uma sessao de bajans às 9h. Todo o ashram é envolvido por sons divinos, canções espirituais cantadas por milhares de pessoas na lingua local, tegulu ou canara, ou ainda em hindi ou sânscrito.

Aproveitei o resto da manhã para visitar diferentes áreas do ashram (na foto ao lado, um dos portais, em frente ao templo). Há até um shopping center, onde produtos essenciais e roupas são vendidos a preços bem mais em conta que no comércio próximo ao asharam. Há cantinas, padarias, lanchonetes, livrarias onde são vendidas obras de Sai Baba, Cds. Há ate uma radio digital. Mas em tudo se sente a ausência de interesse comercial. Os preços são simbólicos ou quase. A comida nos restaurantes, então, é praticamente de graça. Nos santuários espalhados pelo ashram há placas que pedem aos devotos para não colocarem dinheiro junto aos ícones, como acontece normalmente nos templos hinduistas.


O trabalho espiritual de Sai Baba é realmente digno de apoio e colaboração. Sua proposta é de respeito a todas as religiões e prática da devoção a Deus através do amor ao próximo, do trabalho em favor do proximo. Junto ao ashram há um hospital de alto nivel mantido pela comunidade dos devotos. Faz-se ali até transplante de coração. Tudo de graça. Há escolas para criancas pobres. Alguns quilômetros distante do ahsram funciona uma Faculdade de Altos Estudos de Medicina - tudo de graça. Fui tomado de profundo respeito por tudo o que vi e pelo clima espiritual desse lugar abençoado.

À tarde, entro numa das filas para o Darshan das 15h, no grande templo, quando Sai Baba pode comparecer ou não. (Ele não manda aviso). Minha fila foi sorteada para entrar primeiro. Logo, peguei um dos primeiros lugares, a primeira fila, junto a faixa por onde Sai Baba passaria. A segura é rigorosa, Há detetetor de metais na entrada e revista manual, um a um. Uma placa lista dezenas de objetos comos quais não se pode entrar: celular, gravadores, câmeras fotográficas ou filmadoras, caneta, papel, bolsas, garrafas d´água, guarda-chuva, objetos cortantes etc Fiquei três horas sentado no chão de mármore. É dureza. Mesmo os indianos não aguentam ficar o tempo todo na postura de lótus. Mudam, estiram as pernas... Imaginem eu. Mas o ambiente é de paz, nenhuma inquietação. Conversa-se baixo. Todos esperam, inclusive crianças e velhos. Muitos estrangeiros, esses as vezes sentados numa cadeirinha de almofadas que pode ser adquirida no shopping center do ashram. Preferi viver a experiência do indiano comum.

Sai Baba não apareceu, mas pontualmente às 17h teve inicio uma sessão de bajans, lindos, cantados por um cantor de voz melodiosa e repetidos pela multidão. Algo de arrepiar. Nessa tarde, sentaram ao meu lado dois jovens do Nepal que eu conhecera pela manhã, percorrendo o ashram. Conversamos enquanto esperávamos Sai Baba. É grande a presenca de jovens nos oficios religiosos hinduistas, ao contrário do que ocorre nas religiões ocidentais.

Nessa tarde também aconteceu uma das cenas mais hilárias de minha viagem. O fato de ficarmos no chão, apertadinhos no meio da multidao, pode provocar gases. Não tive esse problema, a comida do ashram me fez bem. Mas um garoto que estava junto com a familia não conseguiu segurar e, no meio da multidao, abalou a espera sagrada com um estrondoso pum. No inicio todos olharam para o chão. Mas logo comecaram os risos. Incrível.

No final da tarde, meditei nos jardins e estive no shopping center do ashram. Para entrar lá, como em quase tudo aqui na India, é preciso tirar os sapatos. Também há horários diferentes para o acesso de homens e mulheres. Tudo limitado: os homens só tem das 17 às 19h para comprar. As mulheres, das 9h às 11h. Há tambem horários para comprar nas cantinas, nas livrarias. Nada de consumo descontrolado aqui.Foi um dia lindo. Vou dormir. O vizinho croata está mais gripado ainda. Tosse e eu prefiro dormir com a cabeca para o outro lado da cama.

21/01/06 - O encontro com o avatar e a reação do croata

Acordo às 4h, como a maioria, a fim de não perder o Darsham. Mas só entro na fila de acesso ao templo lá pelas 5h30. Fiquei sentado no chão até às 7h50 quando, finalmente, aparece um carro com vidros aparentemente blindados que vai entrando lentamente pela faixa central do grande templo. É Sai Baba. O coro de homens (a maioria jovens) começa a entoar uma canção ou mantra no idioma local. As pessoas se agitam um pouco. Alguns homens saem da posição e prejudicam a visão de quem está atrás. Há protestos e eles se acomodam. Dessa vez, estou na quinta fileira, desde a faixa. O carro passa pela frente do altar central de Ganesha lentamente. Sai Baba, sentado, olha para nós. Um olhar sereno, cândido. Acena lentamente, sob o peso de seus 80 anos.

O carro contorna e para atrás do altar. Sai Baba desce e, sentado numa cadeira de rodas, é conduzido por um devoto para um contato mais proximo com pessoas que estão junto ao altar. Nesta manhã nenhuma conversa, nenhuma palavra. Ele fica apenas 8 minutos no ambiente e sai no mesmo carro que o trouxe. Vai em direcao ao hospital, onde visitará doentes. Depois irá para outros locais. Mas a multidao, inclusive os que chegaram doentes, parece satisfeita. Todos, então, se levantam e vão embora sem queixas.

Sigo para o restaurante ocidental. Mas não está aberto. Ninguém sabe dizer se haverá café da manhã, apesar de uma placa anunciar que seria servido após a sessão de bajans, àss 9h30. Muito tarde. Encontro o malaio Gowrikumar e um senhor inglês à porta do restaurante. O senhor inglês fala, fala. Eu e o Gowrikumar decidimos comprar algo na padaria para comer. Depois, ele me ensina o caminho para o Museu das Religiões, uma das coisas mais importantes a ser visitadas no ashram. Ali há imagens e documentos referentes a todas as grandes religiões do mundo. O Cristianismo e Jesus têm um lugar especial nos quatro andares do grande edificio, situado no topo de um pequeno monte. Emocionante ver como todas as religioes são tratadas e como são mostradas as similaridades entre todas elas. Tudo com muito respeito. Aliás, Sai Baba tem é autor de livro chamado "Be like Jesus" (Seja como Jesus). nfelizmente nada pode ser fotografado.


Ao deixar o museu, passeio um pouco pelas ruas próximas ao ashram. A cidade de Puttaparthi é próspera, cheia de comércios pequenos, tudo girando em torno de Sai Baba. Quase todas as lojas tem no nome Sai Baba. Ao retornar ao alojamento para molhar o rosto, sou abordado pelo croata. Ele pergunta por que eu dormi com a cabeca invertida. Para não ser grosseiro, digo-lhe que precisava da ventilação do corredor formado pelas camas. Ele então me diz que passei a noite roncando, que tenho um problema sério que pode ser curado com a medicina indiana (ayurvédica). Sugere um tratamento no estado de Kerala. Disse-me que outras pessoas roncaram, mas comigo foi diferente. Eu não deixei os vizinhos dormirem. Um ronco muito forte. Alguns colocaram algodão no ouvido. De fato, com a gripe parece que o problema se complicou. E eu não trouxe comigo nenhum descongestionante nasal. Ao retornar ao Brasil vou tratar desse problema, pois sinto que estou dormindo mal. Durante o dia, às vezes, sinto sono e cansaco. O croata me ajudou com a sua advertência.

Impressionante: o ashram estava cheio de gente, mas o ambiente era de paz e harmonia. Conversei com muitos estrangeiros: gente do Canadá, da Malasia, do Nepal, da Argentina, do Chile, um português e um brasileiro de Curitiba. Todos tinham uma história interessante para contar, mas o melhor depoimento foi o do jovem engenheiro português, de 35 anos, que me foi apresentado no restaurante ocidental. Falou-me que estava impactado. Sempre fora um cético. Nunca se preocupara com energias ou valores espirituais. Mas em apenas cinco dias no ashram sentira que sua vida estava se transformando, ele perdera o controle. Viera direto de Lisboa, a convite de uma amiga. Ficara chocado com a diferenca de hábitos, inicialmente, e com todo o cerimonial religioso do lugar. Mas ao entrar em contato com um anel que fora materializado pelo Sai Baba sentiu uma estranha energia percorrer-lhe o corpo. Estava também impressionado com a paz que sentia. Era como se estivesse voltando à infância. Sentia que precisa aprender tudo de novo. Conversamos um pouco, sugeri livros, falei de minhas experiências, ele estava maravilhado. À noite encontrei-o ferecendo uma guirlanda no santuário de Ganesha, na entrada do ashram.

22/01/06 - Um ladrão no ashram

Acordo as 7h. O croata insiste para que eu vá ao bajan das 9h, diz que é muito poderoso, pois é cantado sobre a faixa por onde caminha Sai Baba, que na manhã deste domingo está em Bangalore. Digo não, pois preciso embarcar às 9h30 num ônibus para Bangalore e, de lá, num trem para Goa. Nesta manhã, a dualidade da vida vai mostrar sua cara mesmo neste recinto sagrado. Ontem percebi que alguém levou minha sandália Dupé, trazida do Brasil, mas atribui o fato a uma simples troca por engano, pois sao milhares os sapatos e sandálias deixados junto ao templo, onde só se entra descalço. A Havaiana que encontrei no lugar da minha Dupé era muito semelhante, mesma cor. Agora calço tênis, pois, a intenção é tomar o café da manha e, em seguida, rumar para a estação de ônibus, em frente ao ashram.

Surpresa: encontro junto a escadaria do restaurante ocidental a minha velha sandália Dupé. Acho aquilo incrível e decido deixar ao lado dela o meu tênis. Na volta, quem sabe, poderia saber quem a capturou na tarde anterior. Mais surpresa: ao retornar do café da manhã não encontro nem a Dupé nem o meu tênis Reebok. Fico perplexo.


O barbudo canadense me diz que já acontecera isso com ele duas vezes. O ashram é um lugar
aberto, todos podem entrar em sair dentro dos horários previstos. Há um posto policial interno onde se vê murais com fotos de pessoas que costumam praticar furtos na área. Tenho apenas 30 minutos para comprar um novo sapato, ir ao alojamento pegar minhas tralhas e embarcar na bus stand. Caminho descalço, encontro o malaio Gowrikumar (foto à esquerda), que se surpreende ao encontrar-me sem sapato e me dá uma boa dica: no domingo, o shopping center do ashram abre para os homens pela manhã. Corro até lá, compro um tênis tipo conga, barato (uns 3 reais aqui), corro mais, pego a mochila e, com a ajuda de um transportador, sigo para a estação de ônibus. Consigo embarcar, gracas ao pequeno atraso do onibus. Mas transpiro por todos os poros.

Viagem tranquila até Bangalore. Ao meu lado, o americano Jerry, um cara de uns 50 anos que está pela segunda vez na Índia. Esteve há pouco em Goa e vai me passando dicas. O Jerry é tranquilo e fala pausadamente, de modo que não temos dificuldades no dialogo. Chego a estaçãozinha de Vespantur meia hora antes do trem partir. Embarco no vagão de camas da segunda classe, mas a viagem é super-tranquila dessa vez. Muitas familias sorridentes, jovens brincando. Na minha cabine está uma familia completa. Troco algumas palavras com o pai e a mãe sobre destino do trem, horários. Me perguntam sobre o Brasil. Mas minha viagem é mesmo solitária. Penso e descanso. E ronco, pois acordo com o vizinho de cima batendo na divisória da cabine. Viajo sem almocar ou jantar, mas dessa vez levo frutas e alguns biscoitos.

23/01/06 – Goa: aqui se fala português?

Panaji e Old Goa
O trem chega a estação da pequena cidade Vasco da Gama com um atraso de apenas 40 minutos, uma raridade na Índia. São 6h50 e o sol ainda está nascendo. Faço fotos na área e vou a pé até a pequena bus stand onde tomo um ônibus (só cinco rupias) para Panaji, a capital do estado de Goa, uma cidade pequena, organizada, limpa, muito agradável.Goa é o menor estado da Índia e um dos preferidos por turistas europeus e do resto mundo. Os portuguesesestiveram aqui por 500 anos. Foram expulsos por tropas indianas na década de 60. Presença ocidental tão longa deixou marcas especiais na área.

Aqui persistem traços ocidentais no dia-a-dia e um comportamentodiferente do resto da Índia. O cristianismo éuma das principais religiões aqui. Muitas igrejas católicas, pequenos oratórios de santos cristãos nas ruas e no comércio, em lugar dos santuarios das deidades hinduistas. Casas de famílias cristãs exibem cruzes em tijolos. Mas ainda vemos os icones de Hanuman e Ganesha em muitos lugares.

Há uma grande liberalidade. Mulheres usam saias e calças compridas; poucas vestem o tradicional sari indiano. Consome-se álcool abertamente (bebe-se muita cerveja aqui, mas não vi bêbados nos bares e nas ruas), ao contrário de outras partes da India, onde somente em alguns hotéis vendaem-se bebidas alcoólicas. Vemos casais se abraçando e até se beijando em público, coisa que não se vê no resto do país (o toque, o abraço e o enlace de mãos é mais comum entre pessoas do mesmo sexo). Na Índia há pouquíssimas mulheres nas ruas (e as que vemos estão com seus maridos).

Engana-se quem pensa que em Goa o português é lingua corrente. Ninguém fala português no
dia-a-dia. Apenas inglês e o dialeto local. Somente alguns habitantes mais antigos sabem falar português e é dificil encontrá-los. Ainda assim, há clubes e instituições que preservam a cultura portuguesa, como o Instituto Camões e o Clube Vasco da Gama (foto ao lado) .Panaji (eles pronunciam Panji) fica a uns 12 quilômetros de Vasco da Gama.

A paisagem da chegada, com pontes cruzando o rio Mandovi e muitas árvores que embelezam toda a cidade, é repousante. Há também pouca poeira e pouco barulho de buzinas por aqui. Chego cedo à pequena bus stand de Kabanda e vou de riquixá para o Hotel República, cujo gerente é um português. Mas ele não está e o atendente me diz que o hotel está lotado. Só as 10h desocuparia um AP. Espero um pouco e decido por a mochila nas costas e sair à procura de outro hotel, seguindo o mapinha do Lonely Planet. Acabo me alojando no Garden Views, da agradável área do Municipal Gardens, o centro da cidade, junto ao rio.

À tarde pego um ônibus para Old Goa, a velha Goa fundada pelos portugueses no século XVI, onde há belíssimas igrejas cristãs da época, monumentos e parques com muito verde. Visito as
igrejas do Bom Jesus (foto à esquerda), onde está a urna com o corpo incorrupto de São Francisco Xavier, a de São Francisco de Assis, a capela de Catarina e a Sé. Não dá tempo para entrar no Museu Arqueológico. Passeio, converso e volto já a noite para Panaji. Perco então o horário para fazer um cruzeiro pelo rio Mandovi, num barco onde um grupo folclorico faz performances. Poderia ainda embarcar no navio Caravela, onde funciona um cassino (proibido no resto da Índia), mas não tenho interesse.


Caminhando pelo comércio, faço fotos e descubro o luxuoso Hotel Mandovi, onde funciona o restaurante RicoRico, bem sofisticado e caro para os padrões locais. O restaurante preserva a cozinha portuguesa e o gerente Evaristo e alguns garçons falam um pouco de português. O cantor da banda, FelipemFernandes, é um senhor que fala portugues fluentemente e diz que vai cantar uma lambada para mim. Depois canta uma marchinha de carnaval (Mamãe eu quero). Faco fotos. O Felipe me adverte que em Goa há “muitos bandidos” e pede cuidado na praia de Anjuna, para onde irei amanhã. Pede para eu ter cuidado com a minha maquina fotográfica. Na verdade, a violência (bem menor do que no Brasil) é maior entre os indianos de Goa, onde há mais contágio dos vicios ocidentais.Vou dormir bem alimentado e totalmente curado do resfriado.

24/01/06 - Anjuna, agito e baseados

Acordo às 8h e, após tomar café e fotografar na área, sigo para a Kabanda stand, onde pego um
ônibus para a cidade de Mapusa (apenas 5 rúpias). Lá pego outro ônibus, lotado, sufocante, para a praia de Anjuna que, junto com a vizinha Vagator, uma das preferidas de turistas europeus, principalmente mochileiros. Em 40 minutos desembarco numa área que lembra as praias da Pipa e Canoa Quebrada, porém mais pobre - os hotéis, as lojinhas, as barraquinhas com produtos artesanais, as redes, as camisetas, as bebidas e droga, muita droga que nos é oferecida abertamente. O visual da praia parece bastante com as praias do Golfinho e a do Amor, em Pipa.

Estou hospedado na Poonam Guest House, citada como uma das melhores pelo Lonely Planet Guide. É simples demais, mas aconhegante. Não há boa iluminação nas vielas de barro.Pela prmieira vez na Índia uso bermuda. Antes o frio me impedia. E onde pude fazê-lo não o fiz porque, nas cidades, bermudas e shorts não são bem vistos. Apesar de minha passagem por aqui ser obrigatória para o trabalho de reportagem (épreciso citar os points de agito), não estou gostando desse lugar. Não há espiritualidae nem paz. Sente-se os interesses comerciais em toda parte. Não é a minha India.

Estou digitando estas linhas numa lan house tranquila, parece uma exceção. Jovens atenciosos no atendimento. Mas preciso ir para o hotel, a 150 metros daqui. São 20h30, há escuridão lá fora.Amanhã farei algumas fotos e, depois, irei ate Vagator, a cerca de quatro quilômetros daqui. É um lugar onde acontecem muitas raves. Mas voltarei antes do anoitecer. Quero dormir aqui. Quero também ver o famoso mercado de pulgas daqui (market flea), na verdade uma feira onde se vende novos e usados, produtos artesanais, uma invenção dos próprios turistas no passado, que assim descolavam um dinheirinho para continuar curtindo a praia. Na quinta-feira quero sair dessa área, estragada pela presenca do turismo ocidental. A partir de Mapusa pegarei ônibus ou trem (estacao de Thirevim, a 12 quilometros da cidade) para a cidade de Puna, onde deverei alojar-me no ashram do falecido guru Osho.

Que viagem! Que surpresas!

25/01/06 - Anjuna e Vagator: a descoberta do outro lado

É sempre assim: o primeiro contato com o desconhecido sempre assusta. Depois descobre-se que o bicho não é tão feio. Ontem estava querendo sair rápido de Anjuna, pois na chegada alguns jovens me ofereceram maconha e cocaína. De fato, há muita droga na área e boa parte da turistada vem para aqui à procura dessa liberalidade. Mas isso não é Anjuna. É uma parte de Anjuna. Hoje acordei já com um certo domínio da área. Percorri as vielas, fiz fotos. Estive em hotéis melhores que o meu (o Poonam, onde eu fiquei, é uma pousada bem agradável, em meio a jardins, mas um pouco decadente. A vantagem para mim é que a TV a cabo tem o canal Aastha, de Mumbai, voltado para divulgação do hinduísmo, com seus programas recheados de mantras e imagens belissimas.

Não fui ao flea market (o mercado de pulgas, um imenso brechó, que na verdade serve também ao contrabando) que funciona as quartas-feiras a beira-mar. Preferi pegar uma van (100 rúpias) para a praia de Vagator, outra preferida dos europeus, a 4 quilômetros de Anjuna. Linda
paisagem, que também lembra a região de Pipa e Tibau do Sul. E ninguém tomando banho de mar na hora de pico dos banhistas brasileiros. Só final de tarde os indianos, que comparecem de calça e vestidos, às vezes avancam na água. Europeus ficam curtindo sol antes desse horário. Visitei o resort Sterling (também caidinho), mas bem localizado: ao pé do morro onde estão as ruínas do Forte Chapora, relíquia da presença portuguesa na região. Dessa vez não arrisquei escalar o morro. Fiz fotos das ruinas do forte a distância.

Fotografei alguns poucos personagens na praia e curti um pouco a brisa, já no final da tarde, antes de me dirigir ao Nine Bar, um lugar que os guias internacionais recomendam para ver o pôr-do-sol no mar da Arábia, pois fica em cima de morro,
num ponto privilegiado. O bar é um point de trance e tecnomusic. Muito barulho o tempo todo, jovens agitados, balaçando o pescoço numa grande arena à sombra de coqueiros. Apesar disso, na entrada, o segurança pede para que leiamos um cartaz: não se aceita câmeras, videos nem drogas. O bar, no passado, foi citado como um point de consumo de drogas. A polícia apertou o cerco. Fiquei alguns minutos. Preferi ver o por-do-sol ao lado, no refinado restaurante Alcoves (foto à direita), que fica dentro de um pequeno condomínio. Aproveitei para almoçar. E haja hot spice, pimenta.

Vagator é famosa por suas raves. Mas tanto lá, como em Anjuna, o maior movimento é no final do ano. O pessoal vem passar reveillon na área. Voltei no início da noite para Anjuna, satisfeito com o dia tranquilo e até com vontade de esticar um pouco mais minha permanência na região, apesar dos precos inflacionados pela presenca de europeus.

26/01/06 – Hare Krishna em Mapusa

Após o café da manha, mochila nas costas e um pequeno passeio pela rua principal (estrada) de Anjuna, antes de pegar o ônibus para Mapusa, onde iria tentar uma passagem de ônibus para Puna, já no estado de Maharastra, um dos mais progressistas da India. No café, um canadense solitário que havia alugado uma bicicleta (na verdade, a maioria do pessoal aluga lambretas, as Scooter italianas), pediu para sentar na minha mesa e, na conversa, disse que vira uma enorme bandeira brasileira na rua principal. Lembrei-me que também vira algo parecido chegada e decidi ir ate lá, achando que se tratava de um comércio de brasileiro. Trata-se da loja Bella Brazil, cuja dona é uma européia que não se deixou fotografar de frente: o nome Brazil é porque ela vende biquinis e sandálias brasileiras.

Consigo comprar a passagem para a Puna (360 rúpias) ao chegar à rodoviária de Mapusa, às
14h, e espero até as 19h30 para subir no ônibus semileito (aqui chamado "luxury bus") que me levaria até Goa. Aproveito para responder a emails, comer comida indiana num restaurante próximo e fotografar devotos de Krishna que, em procissão (foto ao lado), entoavam no final da tarde pelas ruas centrais o conhecido mantra Hare krishna, Hare Rama.

Por pouco não perdi o ônibus que me levaria a Mapusa. O dono de uma lanchonete na rodoviária disse que me avisaria quando o bus chegasse. Ele chegou, sem o destino visível no pára-brisa, e eu indaguei ao rapaz se era o meu onibus. Ele respondeu nao. Dez minutos depois, o ônibus ainda parado, desconfiei e fui até o motorista que me pediu para entrar imediatamente. Estava apenas esperando por mim. É possivel que o rapaz tenha pensado que eu iria embarcar num ônibus comum. Esqueci de dizer que era um Deluxe.

Ao embarcar, deixei para trás duas malas de outro rapaz que, minutos antes, me pedira para olha-las, enquanto ele iria resolver algo. Desconfiado, aceitei. Ele saiu correndo e eu imaginei: e se for uma bomba? Na Índia são comuns os atentados. Pedi que voltasse logo, ele prometeu retornar em cinco minutos e não voltou. Como tive de embarcar, só pude pedir a Deus para que ninguém levasse as suas malas. Coisas de viagem.

A viagem até Puna foi confortavel. Muito frio. Quase jejum, pois não dá para comer na estrada. Ainda assim, numa parada, tive que usar o tradicional banheiro indiano, pois o tal Pav Bahji oleoso que comera à tarde fizera efeito.

No próximo relato - etapa final: PUNA (ashram de Osho), AURANGABAD, MUMBAI, ILHA ELEFANTA E RETORNO A DELHI

[Estas anotações informais complementam a reportagem do site http://www.planetajota.jor.br/ e a reportagem especial ÍNDIA - A deusa de mil faces, da revista Viagem e Turismo, da Editora Abril]